Entenda o caso
A trabalhadora alegou que passava por situação conturbada com seu ex-companheiro e que comunicou esse fato ao chefe em fevereiro de 2023, quando fez a solicitação de que o horário de trabalho fosse alterado, pois tinha que entrar e sair do transporte fornecido pela empresa no ponto em frente à residência do ex-companheiro. Contou que, ao sair do trabalho em horário noturno, estava exposta a grande risco quando desembarcava do transporte em frente ao local, porém não obteve retorno dessa solicitação feita diretamente ao chefe.
Ela relatou que, em fevereiro de 2023, saiu de férias. Ao retornar, em março de 2023, informou ao supervisor sobre a existência de medida protetiva expedida em seu favor pelo juiz plantonista do Juizado Especial da Comarca de Sete Lagoas, em 21/2/2023, contra seu ex-companheiro, em razão do risco que ele representava para ela. O juízo criminal determinou que o ex-companheiro não poderia se aproximar a uma distância menor do que 300 metros da trabalhadora, nem se comunicar com ela de nenhuma forma. A trabalhadora salientou que pediu ao chefe mais uma vez que providenciasse sua alteração de horário de trabalho, o que não foi feito.
Mesmo após todos esses acontecimentos, em junho de 2023, a trabalhadora tomou ciência, por meio de um “recado” do ex-companheiro, que ele passaria a trabalhar para a mesma empresa, tendo a profissional comunicado tal fato de imediato ao chefe, que se comprometeu a levar tal informação ao setor de RH da empresa. Relatou que, mesmo tendo tomado todas essas iniciativas de comunicar as situações ao chefe, no dia 14/7/2023, foi surpreendida com a presença do ex-companheiro no transporte da empresa, tomando conhecimento da contratação dele para trabalhar no mesmo turno.
A trabalhadora alegou ter sofrido abalo psicológico e estar em situação de risco por causa dessa conduta patronal. Ela comunicou à empresa sobre a existência de uma medida protetiva em seu favor, mas, mesmo assim, a empregadora contratou o ex-companheiro, potencializando o risco ao qual ela estava exposta. Ela relatou que essa situação gerou um ambiente de trabalho hostil e inseguro, levando-a a pedir a rescisão indireta do contrato de trabalho, por considerar violada a boa-fé contratual entre as partes, bem como pelo fato de a empresa tê-la exposto a perigo de mal considerável com sua conduta de omissão, com reflexos em sua vida profissional e social.
Alegações da empresa
A empresa argumentou que não tinha conhecimento da existência da medida protetiva expedida contra o ex-companheiro da trabalhadora, pois o contratou antes de ter ciência dessa ordem judicial. Alegou também que não teve tempo hábil para conversar com o novo empregado, que trabalhou apenas um dia antes de abandonar o emprego e ser dispensado por justa causa.
A empresa afirmou que o encontro entre os ex-empregados ocorreu apenas uma vez no transporte coletivo, devido à proximidade de suas residências, e não por conta da contratação realizada. Além disso, argumentou que sempre procurou tratar bem seus empregados para construir um ambiente de trabalho saudável e seguro para todos. Sustentou que o destinatário que deve cumprir as imposições da medida protetiva é o ex-companheiro da trabalhadora apenas, não a empresa.
Rompimento do contrato de trabalho por culpa da empresa
No entanto, a juíza considerou que a empresa, ao contratar o ex-companheiro da reclamante para trabalhar no mesmo turno e local onde ela trabalhava, potencializou o risco ao qual a empregada estava exposta. A situação da possibilidade de encontro diário no transporte fornecido pela empresa e nas dependências do trabalho aumentou a vulnerabilidade da trabalhadora, violando a medida protetiva judicial em favor dela e gerando um ambiente de trabalho hostil e inadequado.
Conforme ponderou a julgadora, embora a empresa tivesse alegado que não tinha conhecimento da existência da medida protetiva, concedida em 21/2/2023, de uma simples análise de documentos juntados ao processo, ficou evidente que a trabalhadora havia comunicado ao chefe a situação de risco perante o ex-companheiro, bem como da existência da medida protetiva proferida em favor dela pelo juízo criminal, em data anterior ao dia 18/7/2023.
O encontro inesperado com o ex-companheiro no ônibus fretado pela empresa foi um dos elementos considerados no julgamento do caso, evidenciando a negligência da empresa em proteger a integridade física e psicológica da trabalhadora, o que contribuiu para a decisão favorável a ela. “A conduta da Reclamada potencializou o risco existente em face da Autora, expondo-a a risco de mal considerável, uma vez que era certo que a Reclamante e o seu ex-companheiro se encontrariam no transporte indo e/ou retornando do trabalho, bem como nas dependências da empresa”, concluiu a magistrada.
Quanto ao setor de trabalho, a juíza observou ainda que havia possibilidade de distanciamento, pois a testemunha ouvida a pedido da empregadora afirmou que ambos os setores estão dentro do mesmo galpão, cujas distâncias poderiam ser superiores a 300m, considerado o tamanho do galpão de, aproximadamente, 2.000 metros quadrados. “Não obstante essa possibilidade de distanciamento, entendo que o simples fato de trabalharem durante o mesmo turno, num mesmo ambiente, já era suficiente para expor a Reclamante a perigo de mal considerável, situação plausível a acontecer, considerado o histórico existente entre eles e desconsiderado pela Reclamada”, ponderou a julgadora, ao declarar a rescisão indireta do contrato de trabalho.
A magistrada fundamentou sua decisão considerando que a conduta irregular da empresa violou a medida protetiva judicial em favor da trabalhadora. A juíza destacou que a empresa tinha ciência da medida protetiva e, mesmo assim, não adotou medidas para afastar a situação de risco, causando abalo psíquico à trabalhadora. Concluiu que a conduta da empresa configurou a rescisão indireta do contrato de trabalho, acolhendo o pedido da reclamante.
A decisão da juíza foi embasada na proteção dos direitos personalíssimos da trabalhadora, incluindo o direito à incolumidade física e psíquica, e na obrigação da empregadora de proporcionar um ambiente de trabalho seguro e adequado, conforme preceitos constitucionais e legais aplicáveis ao caso.
Indenização por danos morais
No mesmo sentido, a julgadora reiterou que houve comprovação da comunicação à empresa sobre a existência da medida protetiva que beneficiava a trabalhadora. Na sentença, ela enfatizou que essa comunicação foi anterior à contratação do ex-companheiro pela empresa. Além disso, os dois foram colocados no mesmo ambiente de trabalho, o que demonstra indiferença em relação ao cumprimento da medida protetiva.
Na visão da juíza, esses fatos, por si só, acentuaram o risco preexistente à vida e integridade física da trabalhadora, aumentando-lhe o fundado temor, e, por consequência, resultando em dano psicológico, devido à ameaça iminente que o ex-companheiro representa para ela.
Por esses fundamentos, a sentença condenou a empresa ao pagamento de uma indenização por danos morais no valor de R$ 10.179,40, quantia fixada com base na última remuneração da trabalhadora e também em critérios legais. Como critério, foi citado o artigo 223-G, parágrafo 1°, inciso III, da CLT (ofensa de natureza grave) combinada com a natureza do bem jurídico tutelado (incolumidade psíquica); grande relevância da conduta que seria atribuída à empresa (proteção ao bem-estar da trabalhadora e à sua dignidade enquanto pessoa humana e mulher); intensidade do sofrimento por ela experimentado (majoração do abalo psicológico sentido e do fundado temor de sofrer um mal considerável); condições em que ocorreu a ofensa e o grau de culpa da empresa (atos omissivos e comissivos em inobservância de decisão judicial preexistente e potencialização do mal considerável que deveria reprimir/evitar/minorar).
Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero
O julgamento do caso foi embasado no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021 e na Resolução CNJ nº 492/2023, que visam garantir a igualdade e não discriminação de todas as pessoas, especialmente no âmbito da Justiça. O Protocolo estabelece diretrizes para que os julgamentos realizados considerem a igualdade e a não discriminação, buscando romper com estereótipos e preconceitos.
No caso em questão, a juíza considerou a perspectiva de gênero ao analisar a situação da trabalhadora vítima de violência doméstica, que se viu em uma posição de vulnerabilidade devido à conduta da empresa. A decisão levou em conta a proteção dos direitos da mulher em igualdade com os do homem, conforme estabelecido na Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), da qual o Brasil é signatário.
A Resolução CNJ nº 492/2023 tornou obrigatórias as diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, visando ampliar o acesso à justiça para mulheres e meninas. Além disso, foi criado um Banco de Sentenças e Decisões para aplicação dessas diretrizes, garantindo que as decisões judiciais estejam alinhadas com os princípios de igualdade e não discriminação.
A magistrada citou o termo "gaslighting", referente a uma forma de abuso psicológico, no qual uma pessoa manipula outra, de modo a fazer com que duvide de sua própria sanidade, memória ou percepção da realidade. O agressor busca minar a confiança da vítima, fazendo-a questionar sua própria capacidade e inteligência. O termo tem origem no filme "Gaslight", de 1944, no qual um marido tenta fazer sua esposa acreditar que ela está ficando louca ao manipular o ambiente ao redor dela.
No contexto do trabalho, o gaslighting pode ocorrer quando um chefe ou colega de trabalho manipula uma pessoa de forma a desqualificar suas preocupações, dúvidas legítimas ou queixas, levando-a a duvidar de si mesma. Essa forma de abuso pode ser sutil e difícil de identificar, mas tem um impacto significativo na saúde mental e bem-estar da vítima.
No caso mencionado, a juíza considerou que a conduta da empresa, ao ignorar as preocupações da trabalhadora em relação ao seu ex-companheiro, contratando-o no mesmo turno e local de trabalho, e permitindo que utilizassem o mesmo meio de transporte, configurou um tipo de gaslighting. A empresa não levou em conta as preocupações legítimas da trabalhadora, expondo-a a uma situação de risco e contribuindo para seu abalo psicológico, o que foi considerado um assédio moral com viés de gênero.
Ao examinar o caso, a magistrada levou em conta a vulnerabilidade da trabalhadora em um ambiente de trabalho onde a empresa não adotou medidas para protegê-la de uma situação de risco, violando uma medida protetiva judicial em favor dela. A decisão foi fundamentada na proteção dos direitos personalíssimos da trabalhadora, incluindo o direito dela à incolumidade física e psíquica, e na obrigação da empregadora de proporcionar um ambiente de trabalho seguro e adequado, conforme os preceitos constitucionais e legais aplicáveis.
Dessa forma, ao considerar a perspectiva de gênero e a proteção dos direitos da mulher no ambiente de trabalho, a juíza deu ênfase à aplicação das diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, garantindo que a decisão judicial estivesse alinhada com os princípios de igualdade e não discriminação, preconizados pelo Protocolo e pela Resolução CNJ nº 492/2023. Houve recurso da sentença, o qual aguarda a data de julgamento no TRT-MG.
Fonte: TRT3
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