Dr. Gamaliel Marques

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segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Crime de falsa anotação ou omissão de registro na CTPS: Justiça Estadual ou Federal?

Em 1992, o Superior Tribunal de Justiça criou a Súmula 62, com a seguinte redação: “Compete à Justiça Estadual processar e julgar o crime de falsa anotação na carteira de trabalho e previdência social, atribuído a empresa privada”.  Em fevereiro de 2008, o julgamento do CC 58443 MG pela 3ª Seção do STJ representou claramente um indicativo de modificação jurisprudencial apta a ensejar a superação da mencionada Súmula 62 do STJ. Naquela ocasião, a Corte decidiu que compete à Justiça Federal (e não à Justiça Estadual) julgar o crime de omissão de anotação de vínculo empregatício na CTPS. No entanto, esta Súmula continuou sendo amplamente aplicada pelos tribunais, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça. Mais recentemente, no ano de 2014, no julgamento do AgRg no CC 131442 RS e do CC 135200 SP, a 3ª Seção do STJ volta a afirmar a competência da Justiça Federal para julgar o crime de omissão de anotação de vínculo empregatício na CTPS, opondo-se novamente ao entendimento outrora fixado em 1992 na Súmula 62 do STJ. Neste cenário, cumpre indagar: estaria a Súmula 62 do STJ superada?

 
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A CTPS foi instituída pelo Decreto n. 21.175/1932 e regulamentada pelo Decreto n. 22.035/1932, sendo o documento considerado obrigatório para todo trabalhador.

Pode-se conceituar a Carteira de Trabalho e Previdência Social como o documento de identificação profissional do trabalhador, provando a existência de contrato de trabalho e o tempo de serviço. Vale dizer, as anotações feitas na CTPS servem de prova do contrato de trabalho, do tempo de serviço do trabalhador, bem como das informações regularmente constantes do mencionado documento.[1]

Ressalte-se que a CTPS é o único comprovante da vida funcional do empregado, que irá garantir os direitos trabalhistas, os benefícios previdenciários e o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS.[2]

Consoante o art. 29 da CLT e art. 201 da CF/88, a CTPS será obrigatoriamente apresentada, contra recibo, pelo trabalhador ao empregador que o admitir. Cabe ao empregador, ao contratar o empregado, realizar as anotações e contribuir para a Previdência Social, garantindo-lhe os direitos trabalhistas e previdenciários.

2. O COMANDO DA SÚMULA 62 DO STJ

Em 26 de novembro de 1992, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 62 com a seguinte redação:

Súmula 62: Compete à Justiça Estadual processar e julgar o crime de falsa anotação na carteira de trabalho e previdência social, atribuído a empresa privada.

Com a edição deste enunciado, o STJ fixa o entendimento de que a competência para julgar o crime de falsificação de documento público, consistente na falsa anotação na CTPS, seria da Justiça Estadual. Isso por entender que, neste caso, a ofensa seria a bem jurídico de direito privado, não havendo lesão a bens, serviços ou interesses da União a invocar a competência da Justiça Federal (art. 109, I da CF/88).

Ficaria afastada a aplicação da Súmula 62 do STJ apenas quando verificado que a intenção do agente era criar condições para obtenção de benefício previdenciário junto à Autarquia Previdenciária (INSS). Neste caso a competência seria da Justiça Federal. Vale dizer: não havendo lesão ao INSS capaz de atrair a competência da Justiça Federal, o agente deveria responder pelo delito de anotação falsa na CTPS perante a Justiça Estadual.

A jurisprudência passou a distinguir duas situações fáticas para fins de fixação dessa competência: [3]

a) A primeira é a hipótese em que determinada empresa privada deixa de anotar o período de vigência de contrato de trabalho de um empregado na CTPS ou anota período menor do que o realmente trabalhado com o fito de não reconhecer o vínculo empregatício e, assim, frustrar os direitos trabalhistas do indivíduo.

b) A segunda hipótese é aquela em que são inseridos dados falsos na CTPS, fazendo constar como período de trabalho que na realidade não existiu, com o fito de serem criadas condições necessárias para se pleitear benefício previdenciário junto ao INSS.

Na primeira hipótese, não haveria qualquer prejuízo a bens, serviços ou interesses da União, senão, por via indireta ou reflexa, do INSS na anotação da carteira, dado que é na prestação de serviço que se encontra o fato gerador da contribuição previdenciária (Súmula 62 do STJ). Por outro lado, na segunda, a lesão à União seria evidente, porque a conduta é cometida com a intenção de obter vantagem indevida às custas do patrimônio público. Neste caso, a competência seria da Justiça Federal (art. 109, I, CF/88).[4]

3. O JULGAMENTO DO CC 58443 MG PELA 3ª SEÇÃO DO STJ EM FEVEREIRO DE 2008

No julgamento do CC 58443 MG, em fevereiro do ano de 2008, a Egrégia 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça decidiu que compete à Justiça Federal julgar ação criminal em detrimento de empregador que, em decorrência de ausência de anotações na CTPS, não assegura direitos trabalhistas ao empregado. [5]

Confira:

"Conflito negativo de competência. Penal. Art. 297, § 4°, do código penal. Omissão de lançamento de registro. Carteiras de Trabalho e Previdência Social. Interesse da previdência social. Justiça federal.

1. O agente que omite dados na Carteira de Trabalho e Previdência Social, atentando contra interesse da Autarquia Previdenciária, estará incurso nas mesmas sanções do crime de falsificação de documento público, nos termos do § 4° do art. 297 do Código Penal, sendo a competência da Justiça Federal para processar e julgar o delito, consoante o art. 109, inciso IV, da Constituição Federal. 2. Competência da Justiça Federal." (CC 58.443-MG, Re. Min. Laurita Vaz, 3ª Seção, unânime, DJ 26/03/2008)

Conforme destacou a ilustre ministra relatora em seu voto:

“Verifica-se, de plano, que o principal sujeito passivo do delito é o Estado, representado pela Previdência Social e, em segundo lugar, a vítima, que deixa de possuir as benesses do registro de sua CTPS.

Dessa forma, existindo interesse da Previdência Social, que integra diretamente a Seguridade Social prevista no art. 194 da Constituição Federal, evidencia-se a competência da Justiça Federal para processar e julgar o feito, nos termos do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal.”

No mesmo sentido é a lição de Celso Delmanto, de que o sujeito passivo do crime seria, "primeiramente, o Estado, representado pela Previdência Social; secundariamente, o segurado e seus dependentes que vierem a ser prejudicados".[6]

Muito embora o julgamento do CC 58443 MG tenha representado claramente um indicativo de modificação jurisprudencial apta a ensejar a superação da Súmula 62 do STJ, este enunciado continuou sendo aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça, como se pode conferir a partir dos julgados a seguir colacionados:

o “(...) Hipótese em que empresa privada deixa de anotar na CTPS da empregada os dados referentes às atualizações ocorridas no contrato de trabalho, com o fito de frustrar direitos trabalhistas, dando origem a reclamação trabalhista. Não se vislumbra qualquer prejuízo a bens, serviços ou interesses da União, senão, por via indireta ou reflexa, do INSS na anotação da carteira, dado que é na prestação de serviço que se encontra o fato gerador da contribuição previdenciária. Entendimento da Súmula n.º 62 do STJ (...)”. STJ - CC 114168 SP, Rel. Min. Maria Thereza  de Assis Moura, 3ª Seção, DJe 25/11/2010

o “(...) 1. A Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça vem decidindo que compete à Justiça Estadual processar e julgar o crime de falsificação de documento público, consistente na omissão de anotação de período de vigência do contrato de trabalho de único empregado, tendo em vista a ausência de lesão a bens, serviços ou interesse da União, consoante o disposto na Súmula 62/STJ. 2. Ressalva do posicionamento deste relator, no sentido de que a conduta descrita no delito capitulado no § 4º do art. 297 do Código Penal, tem como principal sujeito passivo do crime a Autarquia Previdenciária, e secundariamente o trabalhador, razão pela qual a competência seria da Justiça Federal. 3. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da Vara de Inquéritos Policiais de Curitiba/PR, o suscitante.” STJ – CC 108535 PR, Rel. Min. Jorge Mussi, 3ª Seção, DJe 20/05/2010.

4. O JULGAMENTO DO AGRG NO CC 131442 RS E DO CC135200 SP PELA 3ª SEÇÃO DO STJ EM OUTUBRO DE 2014

Mais recentemente, no julgamento do AgRg no CC 131442 RS e do CC135200 SP, a 3ª Seção do STJ veio novamente a afirmar que compete à Justiça Federal – e não à Justiça Estadual – processar e julgar o crime caracterizado pela omissão de anotação de vínculo empregatício na CTPS (art. 297, § 4º, do CP).

Nesta ocasião, a 3ª Seção afirmou que, no delito tipificado no art. 297, § 4º, do CP (figura típica equiparada à falsificação de documento público), o sujeito passivo é o Estado e, eventualmente, de forma secundária, o particular – terceiro prejudicado com a omissão das informações –, circunstância que atrai a competência da Justiça Federal, conforme o disposto no art. 109, IV, da CF.

Confira a ementa do aludido julgamento da 3ª Seção do STJ:

o “Compete à Justiça Federal – e não à Justiça Estadual – processar e julgar o crime caracterizado pela omissão de anotação de vínculo empregatício na CTPS (art. 297, § 4º, do CP). A Terceira Seção do STJ modificou o entendimento a respeito da matéria, posicionando-se no sentido de que, no delito tipificado no art. 297, § 4º, do CP – figura típica equiparada à falsificação de documento público –, o sujeito passivo é o Estado e, eventualmente, de forma secundária, o particular – terceiro prejudicado com a omissão das informações –, circunstância que atrai a competência da Justiça Federal, conforme o disposto no art. 109, IV, da CF (CC 127.706-RS, Terceira Seção, DJe  3/9/2014). Precedente citado: AgRg no CC 131442 RS, Terceira Seção, DJe 19/12/2014) STJ - CC 135200 SP, Rel. originário Min. Nefi Cordeiro, Rel. para acórdão Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 22/10/2014, DJe 2/2/2015.

Ora, o crime de falsa anotação ou omissão de registro na CTPS trata-se de um delito que atenta contra a higidez do sistema previdenciário - gerido por autarquia federal (o INSS) – já que pode reduzir ou impedir o correto recolhimento da contribuição previdenciária.[7]

Observe-se que, à época da edição da Súmula 62, o Código Penal ainda não havia sido alterado pela Lei n. 9.983/2000, que introduziu os §§, 3º e 4º no art. 297 daquele estatuto. Confira:

CP. Art. 297 - Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro: Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa. (...)

§ 3º Nas mesmas penas incorre quem insere ou faz inserir: I – na folha de pagamento ou em documento de informações que seja destinado a fazer prova perante a previdência social, pessoa que não possua a qualidade de segurado obrigatório; II – na Carteira de Trabalho e Previdência Social do empregado ou em documento que deva produzir efeito perante a previdência social, declaração falsa ou diversa da que deveria ter sido escrita; III – em documento contábil ou em qualquer outro documento relacionado com as obrigações da empresa perante a previdência social, declaração falsa ou diversa da que deveria ter constado.

§ 4º Nas mesmas penas incorre quem omite, nos documentos mencionados no § 3º, nome do segurado e seus dados pessoais, a remuneração, a vigência do contrato de trabalho ou de prestação de serviços. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000) (grifos nossos)

CONCLUSÃO:

A falsa anotação ou omissão de registro de lavor na CTPS de empregado constitui fato típico previsto atualmente no art. 297, § 3º, II e § 4º, do CP.

À luz do entendimento fixado pela 3ª Seção do STJ em outubro de 2014 (AgRg no CC 131442 RS e CC135200 SP), no delito tipificado no art. 297, § 4º, do CP (figura típica equiparada à falsificação de documento público), o sujeito passivo é a Autarquia Previdenciária (INSS) e, eventualmente, de forma secundária, o particular (terceiro prejudicado com a omissão das informações), por isso a competência é da Justiça Federal. Nessa mesma linha já havia se posicionado a 3ª Seção do STJ em fevereiro de 2008 (CC 58443 MG). Vale dizer, a falsa anotação ou omissão de registro na CTPS acarreta potencial lesão ao interesse e patrimônio da União, por isso atrai a competência da Justiça Federal (art. 109, IV, CF).

Esta orientação veio de encontro àquela fixada na Súmula 62 do STJ, criada em 1992, época em que o CP ainda não havia sido alterado pela Lei n. 9.983/2000, que introduziu os §§, 3º e 4º no art. 297 do CP.

Muito embora o STJ ainda não  tenha afirmado expressamente que a Súmula 62 foi superada, a análise da jurisprudência da Corte indica claramente nesse sentido, razão pela qual esta Súmula merece ser cancelada.

REFERÊNCIAS:

DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado e Legislação Complementar, 7ª ed. Rev. e Atualizada, Renovar: RJ, 2007, p. 742

GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Manual de Direito do Trabalho, 3ª ed. São Paulo: Método, 2011, p. 122 et. seq

Notas:

[1] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Manual de Direito do Trabalho, 3ª ed. São Paulo: Método, 2011, p. 122 et. seq

[2] Cf. STJ – Voto da Ministra Laurita Vaz (Relatora) no CC 58443 MG, 3ª Seção, DJe 26/03/2008.

[3] Cf. STJ - CC 99451 PR, Rel. Min.JORGE MUSSI, 3ª Seção, DJe 27/08/2009.

[4] Odem.

[5] A respeito do tema, indicamento a leitura de FISCHER, Douglas. O equívoco da Súmula 62 do STJ: anotação falsa ou omissão de anotação em CTPS é crime de competência federal. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jun. 2008. Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao024/Douglas_Fischer.html Acesso em: 20 mar. 2015.

[6] Cf. DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado e Legislação Complementar, 7ª ed. Rev. e Atualizada, Renovar: RJ, 2007, p. 742 e 743 – Citado no Voto do Ministro JORGE MUSSI (Relator), no CC 108535 PR, 3ª Seção, DJe 20/05/2010.

[7] Cf., nessa mesma linha: TRF2 - RECURSO EM SENTIDO ESTRITO  2009.51.05.000391-5, Rel. Des. André Fontes, DJU 16/10/2014.

Autora: Alice Saldanha Villar é Advogada e autora dos livros “Direito Sumular - STF” e Direito Sumular - STJ”, Editora JHMIZUNO, São Paulo, 2015 - Prefácio do Ministro Luiz Fux.
 
Fonte: Jus Brasil / Alice Saldanha Vilar

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