Luiz Silveira/Agência CNJ
Atrasos na tramitação de processos, no Judiciário de Pernambuco, têm mantido pessoas presas além do prazo e sem situação definida, o que fere a legislação, viola os direitos humanos e contribui para a superlotação das prisões. O diagnóstico consta de relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre o Complexo Prisional do Curado, do Recife, inspecionado pelo Mutirão Carcerário no período de 28 de abril a 9 de maio. O caso mais grave identificado é de um homem que estava preso há seis anos e seis meses sem saber quando seria julgado pela acusação de homicídio.
O relatório traz uma série de recomendações para regularizar a tramitação dos processos, ampliar as vagas no sistema prisional pernambucano e promover a reinserção social dos detentos. Sua aprovação pelo plenário do CNJ ocorreu no dia 16 de junho, durante a 191ª sessão ordinária, sob a relatoria do conselheiro Guilherme Calmon, supervisor do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF).
O documento foi elaborado pelos juízes auxiliares da Presidência do CNJ Douglas de Melo Martins, coordenador do DMF, e Luiz Carlos Rezende e Santos, juntamente com o juiz do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas (TJAL) José Braga Neto, designado para coordenar o mutirão carcerário.
As inspeções que basearam o relatório fazem parte de estratégia do CNJ, adotada neste ano, de executar os chamados mutirões carcerários regionais, focados nos maiores presídios e conjuntos prisionais do país. É o caso do Complexo do Curado, maior unidade carcerária de Pernambuco, onde os juízes inspetores encontraram 6.862 detentos comprimidos em um espaço com apenas 1.466 vagas. Eles correspondem a 22,56% da população carcerária do estado.
O local é insalubre e inseguro, com fios elétricos expostos, esgoto a céu aberto, mau cheiro, vazamentos, paredes rachadas e quebradas, falta de telhas e entupimentos. O quadro é ainda mais degradante pelo fato de a administração da unidade computar como vagas buracos improvisados nas paredes, onde muitos presos dormem, e também partes dos corredores ocupadas por colchões.
O mutirão atestou também que policiais militares e agentes penitenciários não adentram os pavilhões unidade, “os quais ficam sob o controle absoluto dos presos, favorecendo o comércio de drogas, armas e até mesmo de alimentos, ficando clara a circulação de dinheiro”, conforme o relato dos juízes.
Risco - A insegurança do local foi sentida de perto pelos próprios magistrados do mutirão carcerário. Em um dia chuvoso, segundo o relatório, uma pessoa se apresentou com um guarda-chuva para, supostamente, amparar os integrantes da comissão de inspeção. “No entanto, a comissão foi surpreendida com a voz alta de um agente penitenciário mandando que aquela pessoa levantasse a camisa, constatando que ela estava de posse de duas facas peixeiras na cintura, uma em cada lado, demonstrando com isso a total insegurança dos que ali transitam ou fazem inspeção”, relatam os juízes.
Entre as causas da superlotação do Complexo Prisional do Curado, o relatório do CNJ aponta, além da lenta tramitação dos processos, a falta de investimentos no sistema prisional e a prática, pelo Judiciário estadual, de uma “política de encarceramento” que privilegia a prisão mesmo nos casos de pequenos delitos.
“A falta de investimento, demora no julgamento processual e a manutenção da prisão de pessoas que cometeram pequenos delitos transformam as casas prisionais em verdadeiros depósitos de pessoas que vivem amontoadas de forma indigna, com total desrespeito a seus direitos humanos básicos e ao artigo 92, parágrafo único, alínea b da LEP (Lei de Execução Penal), que trata do limite da capacidade máxima por cela”, atesta o relatório. O documento observa ainda que, a partir do diagnóstico encontrado no Complexo do Curado, é possível constatar que a situação do sistema prisional de Pernambuco piorou desde 2011, quando outro mutirão carcerário do CNJ também fez uma série de recomendações às autoridades locais.
Abandono - O conjunto prisional inspecionado pelo CNJ é formado por três presídios. Dos 6.682 detentos do local, 64,95% aguardavam julgamento quando foi realizado o mutirão carcerário. O percentual considerado “alarmante” pelos inspetores, que definem como “abandono” a situação encontrada. Eles destacam que a maioria dos magistrados de Pernambuco não prioriza a tramitação de processos de detentos provisórios (ainda não julgados) e nem toma iniciativa para rever as prisões decretadas.
“O elevado percentual de presos provisórios do Complexo do Curado, acrescido ao que se ouviu e constatou durante as inspeções feitas nos estabelecimentos prisionais, em que houve inúmeros relatos de presos recolhidos há muito tempo sem uma definição de sua situação jurídica, evidencia que muitas dessas prisões estão sendo desvirtuadas, não guardando o caráter essencial de cautelaridade processual, ficando caracterizado verdadeiro caos de antecipação da pena”, critica o CNJ.
O caso mais emblemático identificado pelo mutirão carcerário é o do detento R. S. G., preso preventivamente em 2007, acusado de homicídio e que, seis anos e seis meses depois, ainda não sabia quando seria julgado. Seu processo se arrastava na Vara do Tribunal do Júri da Comarca de Olinda, que, até a realização do mutirão carcerário, não havia ainda sequer proferido a sentença de pronúncia do réu – segundo a legislação, a sentença de pronúncia se dá quando o juiz decide que o acusado será submetido a júri popular. O relatório do CNJ acrescenta que em todo esse tempo nenhuma testemunha arrolada na denúncia do Ministério Público foi ouvida.
O mutirão carcerário também constatou que por trás do alto índice de presos provisórios está a ausência de um controle informatizado, centralizado e atualizado para acompanhamento das prisões cautelares. Dessa forma, “não há como se realizar uma eficaz fiscalização, com o arrastamento de situações injustas que poderiam ser alteradas”, informa o relatório.
Outra deficiência verificada é que desde 2012 juízes da 1ª Vara de Execução Penal (VEP) do Recife não realizam inspeções no Complexo Prisional do Curado. Segundo o relatório, isso reflete o descumprimento da LEP, que inclui entre os deveres dos juízes de Execução Penal o de inspecionar, mensalmente, os estabelecimentos prisionais. Essas inspeções, conforme a LEP, servem para o levantamento de irregularidades, apuração de responsabilidades e tomada de providências. A falta de fiscalização do Judiciário no Complexo do Curado favorece, entre outras distorções, a convivência de presos provisórios com condenados, de primários com reincidentes, o que viola o princípio da individualização da pena.
Providências - Uma das orientações do CNJ é para que o Poder Judiciário atualize e aprimore o parque de informática para o adequado acompanhamento das fases e prazos dos processos de condenados e de presos provisórios. Outra recomendação é pela realização, no segundo semestre deste ano, de curso de capacitação de servidores das varas criminais e de execução penal do estado. Além disso, magistrados devem receber orientação sobre a prática de atos processuais e normas a respeito do tema, inclusive as editadas pelo CNJ. A medida é apontada como necessária para a padronização de procedimentos em todas as comarcas do estado.
Os juízes do mutirão carcerário também propõem que o Judiciário de Pernambuco priorize o julgamento de ações penais de réus presos, em especial as relacionadas a crimes hediondos ou a eles equiparados, no prazo de 30 dias. Deve haver, ainda, um reforço do quadro de servidores da 1ª Vara de Execução Penal do Recife, que tem sob sua jurisdição o Complexo do Curado. O efetivo atual foi considerado insuficiente diante das demandas da unidade.
Recomendações - Ao governo de Pernambuco, o CNJ recomenda a abertura, no prazo de dois anos, de 5.396 vagas no sistema carcerário, por meio da construção de estabelecimentos penais, preferencialmente com capacidade para até 400 detentos cada um. O Executivo deve atentar para a distribuição territorial, de forma a possibilitar que os apenados cumpram pena o mais próximo de suas famílias.
O governo de Pernambuco, conforme o relatório, deverá promover, no Complexo Prisional do Curado, a separação dos presos provisórios dos condenados, direcionando cada grupo para unidades adequadas a seus perfis, no prazo de 30 dias. É necessário haver, ainda, a ampliação do quadro de defensores públicos para que haja, pelo menos, um profissional para cada 500 detentos. Tal providência deve ser tomada no prazo de 60 dias.
O Executivo é orientado também a interditar, imediatamente, as celas do Complexo do Curado desprovidas de circulação de ar e entrada de luz natural, para evitar prejuízos à saúde dos detentos. Com foco na reinserção social dos presos, o CNJ propõe o estabelecimento, no prazo de 90 dias, de parcerias para aumentar a oferta de vagas de trabalho e de cursos profissionalizantes.
O Conselho propõe também a realização de concurso público para o preenchimento de cargos de agentes penitenciários, na proporção estabelecida pelo Ministério da Justiça (1 servidor para cada 5 presos), no prazo de 1 ano. É igualmente necessário, segundo os juízes do mutirão carcerário, que os estabelecimentos penais sejam dotados, no prazo de um ano, de equipes de saúde.
Benefícios - O mutirão carcerário, após analisar 5.184 processos de detentos, concedeu uma série de benefícios. O exame de 2.944 processos de condenados resultou em 32 extinções de pena; 172 livramentos condicionais; 29 progressões ao regime aberto de cumprimento de pena e 359 para o semiaberto; um indulto; duas transferências de unidade e duas prisões domiciliares.
Os inspetores do mutirão, para ilustrar as deficiências na tramitação dos processos em Pernambuco, destacam que todos os benefícios concedidos aos condenados estavam atrasados há pelo menos seis meses. Há casos, por exemplo, de pessoas que já deveriam estar soltas, em função da extinção da pena, desde 2011.
Quanto à análise de 2.242 processos de presos provisórios, foram concedidos 27 relaxamentos de flagrante e 194 liberdades provisórias ou revogações de prisões preventivas. O mutirão decidiu também adotar medidas cautelares alternativas à prisão em 63 casos.
O relatório do CNJ destaca o apoio que as atividades do mutirão carcerário receberam do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE), de magistrados, servidores, defensores públicos e promotores de Justiça. “O nível de colaboração foi excelente”, informa o documento, citando, entre outros fatores, a estrutura colocada à disposição dos trabalhos. Sobre a participação dos magistrados, o CNJ ressalta que “a forma de atuação dos juízes foi eficiente, eficaz e rápida. Vale salientar o empenho do juiz coordenador indicado pelo TJPE Cícero Bitencourt, bem como a notável disponibilidade da juíza-auxiliar da Presidência do TJPE Mariana Vargas”.
Acesse aqui a íntegra do relatório do Mutirão Carcerário no Complexo Prisional do Curado.
Agência CNJ de Notícias