A Medida Provisória nº 764, de 26/12/2016, dispondo sobre a diferenciação de preço de bens e serviços oferecidos ao público, em função do prazo ou instrumento de pagamento utilizado (dinheiro, cheque ou cartão de crédito), pretende legitimar uma prática abusiva em detrimento do consumidor, repudiada de há muito pela doutrina consumerista por afrontar o art. 39, incisos V e X da Lei n 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor – CDC). Mais: subverte e desconstrói toda a jurisprudência consolidada dos tribunais.
Em verdade, a despeito do pressuposto de eventual desconto na compra à vista, esta quando realizada por meio de cartão de crédito continuará sendo da mesma modalidade de venda, porquanto esse segundo meio de pagamento (venda pro soluto) também enseja a quitação do preço, com a imediata extinção da obrigação do consumidor adquirente perante o vendedor.
Em menos palavras, inicia-se uma subsequente relação jurídica autônoma entre a administradora do cartão - tornada responsável pela compra - e o fornecedor do bem ou serviço, no efeito do ulterior repasse do valor do negócio. Tem sido comum, aliás, nos contratos do tipo (comerciante vs. administradora) a inserção de cláusula vedando a prática de preços diferenciados (STJ - Resp. nº 817015-DF, DJ 21/10/2008).
Explique-se logo: quando lojista ou fornecedor se disponha a aceitar cartão de crédito como meio de pagamento, a sua utilização não poderá sofrer nenhum acréscimo de custos, por conferir maior onerosidade na venda, com vantagem indevida e excessiva ao vendedor e constituir infração à ordem econômica (Lei nº 12.529/2011, artigo 36, parágrafo 3º, letra “d”, inciso X).
Diante da legislação consumerista de 1990, editou-se, inclusive, a Portaria n 118/1994 do Ministério da Fazenda, dispondo tratar-se a compra com cartão de crédito como pagamento à vista e desde então, os tribunais reprimem a diferenciação de preço, havida como “prática abusiva no mercado de consumo, a qual é nociva ao equilíbrio contratual” (STJ – 4ª Turma, Resp. nº 1479039-MG, Relator Ministro Humberto Martins, DJe. 16/10/2015). A propósito, o STJ tem mantido a validade dos autos de infração lavrados em ordem a proteger o direito do consumidor, a exemplo do julgado mais recente (STJ – 1º Turma, 1ª Resp. nº 1.610.813-ES, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho. DJe. 26/08/2016).
Cumpre sejam anotadas as primeiras reflexões. O jurista Flávio Tartuce questiona, de imediato: (i) a realidade de mercado provocará aumento de preço pelo uso do cartão de crédito e não necessariamente a sua redução pelo pagamento em dinheiro; (ii) padece de sentido jurídico o parágrafo único do artigo 1º da MP ao dispor sobre a nulidade absoluta da cláusula contratual que proíba ou restrinja a diferenciação dos preços, quando, a todo rigor, cláusula abusiva seria exatamente, a contrário, a previsão da diferenciação, convocando-se o art. 51 do CDC; e (iii) a igualdade entre os consumidores, um dos seus direitos básicos (art. 6, inciso II, CDC), é atingida pela MP.
Ora. A disponibilização de cartões de crédito muito interessa à atividade econômica (a tanto que são cerca de 650 milhões no país), mas os seus custos de uso, que em nada referem ao preço de venda do produto, não devem ser transferidos ao consumidor, vulnerável uma vez mais.
Fonte: Folha de Pernambuco, 23/01/2017
...................................................................................................................................................... Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE). Mestre em Ciências Jurídicas e especialista em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa (FDUL), preside a Comissão de Magistratura de Família do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Tem artigos publicados no Consultor Jurídico e na Folha de Pernambuco.
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