Quando um casal desenvolve uma relação afetiva contínua e duradoura, conhecida
publicamente e estabelece a vontade de constituir uma família, essa relação pode
ser reconhecida como união estável, de acordo com o Código Civil de 2002
(CC/02). Esse instituto também é legitimado pela Constituição Federal de 1988 em
seu artigo 226, parágrafo 3º.
Por ser uma união que em muito se
assemelha ao casamento, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
tem aplicado às uniões estáveis, por extensão, alguns direitos previstos para o
vínculo conjugal do casamento.
Na união estável, o regime de bens a ser
seguido pelo casal, assim como no casamento, vai dispor sobre a comunicação do
patrimônio dos companheiros durante a relação e também ao término dela, na
hipótese de dissolução do vínculo pela separação ou pela morte de um dos
parceiros. Dessa forma, há reflexos na partilha e na sucessão dos bens, ou seja,
na transmissão da herança.
O artigo 1.725 do CC/02 estabelece que o
regime a ser aplicado às relações patrimoniais do casal em união estável é o de
comunhão parcial dos bens, salvo contrato escrito entre companheiros. Mas o que
acontece no caso de um casal que adquire união estável quando um dos
companheiros já possui idade superior a setenta anos?
É justamente em
virtude desse dispositivo que vários recursos chegam ao STJ, para que os
ministros estabeleçam teses, divulguem o pensamento e a jurisprudência dessa
Corte sobre o tema da separação obrigatória de bens e se esse instituto pode ou
não ser estendido à união estável.
Antes de conhecer alguns casos
julgados no Tribunal, é válido lembrar que o direito de família brasileiro
estabeleceu as seguintes possibilidades de regime de comunicação dos bens:
comunhão parcial, comunhão universal, separação obrigatória, separação
voluntária e ainda participação final nos aquestos (bens adquiridos na vigência
do casamento).
Obrigatoriedade
A obrigatoriedade
da separação de bens foi tratada pelo Código Civil de 1916 (CC/16) em seu artigo
258, parágrafo único, inciso II. No novo código, o assunto é tratado no artigo
1.641. Para o regramento, o regime da separação de bens é obrigatório no
casamento das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas
da celebração do casamento; da pessoa maior de 70 anos, (redação dada pela Lei
12.344 de dezembro de 2010. Antes dessa data a redação era a seguinte: do maior
de sessenta e da maior de cinquenta anos) e de todos os que dependerem, para
casar, de suprimento judicial.
No Recurso Especial 646.259, o ministro
Luis Felipe Salomão, relator do recurso, entendeu que, para a união estável, à
semelhança do que ocorre com o casamento, é obrigatório o regime de separação de
bens de companheiro com idade superior a sessenta (60) anos. O recurso foi
julgado em 2010, meses antes da alteração da redação do dispositivo que aumentou
para setenta (70) o limite de idade dos cônjuges para ser estabelecido o regime
de separação obrigatória.
Com o falecimento do companheiro, que iniciou
a união estável quando já contava com 64 anos, sua companheira pediu em juízo a
meação dos bens. O juízo de primeiro grau afirmou que o regime aplicável no caso
é o da separação obrigatória de bens e concedeu a ela apenas a partilha dos bens
adquiridos durante a união estável, mediante comprovação do esforço comum.
Inconformada com a decisão, a companheira interpôs recurso no Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS).
O TJRS reformou a decisão do
primeiro grau e deu provimento ao recurso. Afirmou que não se aplica à união
estável o regime da separação obrigatória de bens previsto no artigo 258,
parágrafo único, inciso II, do CC/16, “porque descabe a aplicação analógica de
normas restritivas de direitos ou excepcionantes. E, ainda que se entendesse
aplicável ao caso o regime da separação legal de bens, forçosa seria a aplicação
da súmula 377 do Supremo Tribunal Federal (STF), que igualmente contempla a
presunção do esforço comum na aquisição do patrimônio amealhado na constância da
união”.
O espólio do companheiro apresentou recurso especial no STJ
alegando ofensa ao artigo mencionado do CC/16 e argumentou que se aplicaria às
uniões estáveis o regime obrigatório de separação de bens, quando um dos
conviventes fosse sexagenário, como no caso.
Instituto
menor
Para o ministro Luis Felipe Salomão, a partir da leitura
conjunta das normas aplicáveis ao caso, especialmente do artigo 226, parágrafo
3º, da Constituição, do CC/16 e das Leis 8.971/94 e 9.278/96, “não parece
razoável imaginar que, a pretexto de se regular a união entre pessoas não
casadas, o arcabouço legislativo acabou por estabelecer mais direitos aos
conviventes em união estável (instituto menor) que aos cônjuges”.
Salomão, que compõe a Quarta Turma do STJ, mencionou que o próprio STF,
como intérprete maior da Constituição, divulgou entendimento de que a Carta
Magna, “coloca, em plano inferior ao do casamento, a chamada união estável,
tanto que deve a lei facilitar a conversão desta naquele”. A tese foi expressa
no Mandado de Segurança 21.449, julgado em 1995, no Tribunal Pleno do STF, sob a
relatoria do ministro Octavio Gallotti.
Salomão explicou que, por força
do dispositivo do CC/16, equivalente em parte ao artigo 1.641 do CC/02, “se ao
casamento de sexagenário, se homem, ou cinquentenária, se mulher, é imposto o
regime de separação obrigatória de bens, também o deve ser às uniões estáveis
que reúnam as mesmas características, sob pena de inversão da hierarquia
constitucionalmente sufragada”.
Do contrário, como cita Caio Mário da
Silva Pereira, respeitado jurista civil brasileiro, no volume 5 de sua coleção
intitulada Instituições do Direito Civil, se aceitassem a possibilidade de os
companheiros optarem pelo regime de bens quando o homem já atingiu a idade
sexagenária, estariam “mais uma vez prestigiando a união estável em detrimento
do casamento, o que não parece ser o objetivo do legislador constitucional, ao
incentivar a conversão da união estável em casamento”. Para Caio Mario, “deve-se
aplicar aos companheiros maiores de 60 anos as mesmas limitações previstas para
o casamento para os maiores desta idade: deve prevalecer o regime da separação
legal de bens”.
Discrepância
O entendimento dos
ministros do STJ tem o intuito de evitar interpretações discrepantes da
legislação que, em sentido contrário ao adotado pela Corte, estimularia a união
estável entre um casal formado, por exemplo, por um homem com idade acima de 70
anos e uma jovem de 25, para burlarem o regime da separação obrigatória previsto
para o casamento na mesma situação.
Ao julgar o REsp 1.090.722, o
ministro Massami Uyeda, relator do recurso, trouxe à tona a possibilidade de tal
discrepância. “A não extensão do regime da separação obrigatória de bens, em
razão da senilidade do de cujus (falecido), constante do artigo 1.641, II, do
Código Civil, à união estável equivaleria, em tais situações, ao desestímulo ao
casamento, o que, certamente, discrepa da finalidade arraigada no ordenamento
jurídico nacional, o qual se propõe a facilitar a convolação da união estável em
casamento, e não o contrário”, analisou.
O recurso especial foi
interposto pelo irmão do falecido, que pediu a remoção da companheira como
inventariante, por ter sonegado informações sobre a existência de outros
herdeiros: ele mesmo e seus filhos, sobrinhos do falecido, na sucessão. A união
estável foi iniciada após os sessenta anos de idade do companheiro, por isso o
irmão do falecido alegou ser impossível a participação da companheira na
sucessão dos bens adquiridos onerosamente anteriores ao início da união estável.
No STJ a meação foi excluída. A mulher participou da sucessão do
companheiro falecido em relação aos bens adquiridos onerosamente na constância
da convivência. Período que, para o ministro Uyeda, não se inicia com a
declaração judicial que reconhece a união estável, mas, sim, com a efetiva
convivência. Ela concorreu ainda com os outros parentes sucessíveis, conforme o
inciso III do artigo 1.790 do CC/02.
Uyeda observou que “se para o
casamento, que é o modo tradicional, solene, formal e jurídico de constituir
uma família, há a limitação legal, esta consistente na imposição do regime da
separação de bens para o indivíduo sexagenário que pretende contrair núpcias,
com muito mais razão tal regramento deve ser estendido à união estável, que
consubstancia-se em forma de constituição de família legal e constitucionalmente
protegida, mas que carece das formalidades legais e do imediato reconhecimento
da família pela sociedade”.
Interpretação da
súmula
De acordo com Uyeda, é preciso ressaltar que a aplicação
do regime de separação obrigatória de bens precisa ser flexibilizado com o
disposto na súmula 377/STF, “pois os bens adquiridos na constância, no caso, da
união estável, devem comunicar-se, independente da prova de que tais bens são
provenientes do esforço comum, já que a solidariedade, inerente à vida comum do
casal, por si só, é fator contributivo para a aquisição dos frutos na
constância de tal convivência”.
A súmula diz que “no regime de separação
legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”. A
interpretação aplicada por Uyeda foi firmada anteriormente na Terceira Turma
pelo ministro Carlos Alberto Menezes Direito, no julgamento do REsp 736.627.
Para Menezes Direito os aquestos se comunicam não importando que hajam
sido ou não adquiridos com esforço comum. “Não se exige a prova do esforço comum
para partilhar o patrimônio adquirido na constância da união”.
De acordo
com Menezes Direito, a jurisprudência evoluiu no sentido de que “o que vale é a
vida em comum, não sendo significativo avaliar a contribuição financeira, mas,
sim, a participação direta e indireta representada pela solidariedade que deve
unir o casal, medida pela comunhão da vida, na presença em todos os momentos da
convivência, base da família, fonte do êxito pessoal e profissional de seus
membros”.
Esforço presumido
Para a ministra
Nancy Andrighi, no julgamento do REsp 1.171.820, ocasião em que sua posição
venceu a do relator do recurso, ministro Sidnei Beneti, a relatora para o
acórdão considerou presumido o esforço comum para a aquisição do patrimônio do
casal.
O recurso tratava de reconhecimento e dissolução de união
estável, cumulada com partilha de bens e pedido de pensão alimentícia pela
companheira. Ela alegava ter vivido em união estável por mais de uma década com
o companheiro. Este, por sua vez, negou a união estável, afirmou tratar-se
apenas de namoro e garantiu que a companheira não contribuiu para a constituição
do patrimônio a ser partilhado, composto apenas por bens imóveis e rendimentos
dos aluguéis deles.
O tribunal de origem já havia reconhecido a união
estável do casal pelo período de 12 anos, sendo que um dos companheiros era
sexagenário no início do vínculo. E o STJ determinou que os autos retornassem à
origem, para que se procedesse à partilha dos bens comuns do casal, declarando
a presunção do esforço comum para a sua aquisição.
Como o esforço comum
é presumido, a ministra Nancy Andrighi declarou não haver espaço para as
afirmações do companheiro alegando que a companheira não teria contribuído para
a constituição do patrimônio a ser partilhado.
Para a ministra, “do
ponto de vista prático, para efeitos patrimoniais, não há diferença no que se
refere à partilha dos bens com base no regime da comunhão parcial ou no da
separação legal contemporizado pela súmula 377 do STF”.
Alcance
da cautela
A dúvida que pode surgir diz respeito ao que
efetivamente a cautela da separação obrigatória, contemporizada pela súmula,
alcança. Para o ministro Menezes Direito, a súmula “admitiu, mesmo nos casos de
separação legal, que fossem os aquestos partilhados”.
De acordo com ele,
a lei não regula os aquestos, ou seja os bens comuns obtidos na constância da
união estável. “O princípio foi o da existência de verdadeira comunhão de
interesses na constituição de um patrimônio comum”, afirmou. E confirmou que a
lei não dispôs que a separação alcançasse os bens adquiridos durante a
convivência.
Para Menezes Direito, “a cautela imposta (separação
obrigatória de bens) tem por objetivo proteger o patrimônio anterior, não
abrangendo, portanto, aquele obtido a partir da união” (REsp 736.627).
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