A Folha de S.Paulo publicou, neste domingo (22), artigo de
autoria do presidente da OAB Nacional, Felipe Santa Cruz, sobre a Lei de Abuso de Autoridade. Clique aqui para ler no site da Folha ou veja abaixo a íntegra do
artigo:
Abuso de autoridade e 'sabe com quem está falando?'
Roberto DaMatta, destacado estudioso da cultura brasileira,
afirma que o “sabe com quem está falando?”, que tanto ecoa no cotidiano do
cidadão comum, revela um rito informal de autoridade na vida social do país.
Trata-se de um autoritarismo rotineiro, especialmente nos momentos em que os
“donos do poder” têm seus interesses pessoais confrontados. Aos cidadãos
comuns, o rigor da lei; aos “donos do poder”, os privilégios e a faculdade de
exercer, permanentemente, o arbítrio e, com isso, a possibilidade de dizer que
manda e desmanda o país.
A aprovação no Congresso Nacional da Lei de Abuso de
Autoridade representou um grande avanço para enfrentar e coibir esse cotidiano
de arbitrariedades. A lei anterior datava de 1965 e evidentemente necessitava
de atualização.
A nova lei, na forma aprovada no Congresso, inclui tema
especialmente importante para a advocacia e a garantia do direito de defesa do
cidadão: a criminalização da violação das prerrogativas do advogado. A proposta
aprovada vale para todas as autoridades, do Judiciário, do Executivo ou do
Legislativo, e significa a subordinação de todos, inclusive dos mais poderosos,
ao império da lei. Trata-se, portanto, de preservar e garantir o direito do
cidadão diante de eventual abuso da força por um agente do Estado.
Os grandes avanços obtidos nos últimos tempos no combate à
corrupção, com a independência e o melhor aparelhamento do Ministério Público e
dos órgãos de investigação, estarão preservados e aprimorados. Qualquer
denúncia de abuso de autoridade será investigada e julgada pelo próprio
Judiciário, e a OAB tem plena confiança que nosso sistema jurisdicional será
capaz de fazer cumprir a lei, com razoabilidade e imparcialidade, como
determina nossa Constituição.
A sensibilidade das casas legislativas, que aprovaram a
legislação com votação de ampla maioria, infelizmente não se repetiu na atitude
do presidente da República. A sanção da lei veio com 36 vetos dos 108
dispositivos aprovados pelo Congresso —vetos que desfiguram e anulam os efeitos
da legislação. Dentre eles, os artigos que criminalizam a violação de
prerrogativas dos advogados, como a inviolabilidade do escritório, comunicação
com os clientes, negação do acesso ao interessado —ou ao seu advogado— aos
autos investigatórios.
Durante o processo legislativo, a advocacia brasileira,
ciente de seu papel de guardiã da sociedade civil, se mobilizou em defesa do
projeto. São inúmeras as situações em que os advogados são impedidos de exercer
sua profissão, em total prejuízo à defesa. Não são raros os momentos em que o
direito de defesa tem sido violado e flexibilizado, inclusive por aqueles que
têm o dever funcional de tutelá-lo, como magistrados e promotores.
A argumentação para o veto é, no mínimo, frágil. Ao
sustentar que o dispositivo gera “insegurança jurídica por encerrar tipo penal
aberto e que comporta interpretação”, o chefe do Executivo desconsidera que as
prerrogativas elencadas no artigo 7º da lei nº 8.906/1994, o Estatuto da
Advocacia, não são genéricas; ao contrário, são claras, objetivas e individualizadas.
O bem jurídico tutelado, no caso, está intimamente ligado ao
direito de ampla defesa. Afinal, o art. 133 da Constituição atribuiu à
advocacia um status constitucional, contendo declaração expressa de
indispensabilidade do advogado perante a Justiça, e enfatizando, sobretudo, a
liberdade de atuação desse profissional para a concretização do Estado
democrático de Direito e do acesso à Justiça. Portanto, não há justificativa
legal para a desfiguração da lei.
Resta, portanto, a intenção de perpetuar o desequilíbrio de
forças, o desamparo da população e a injustificável cultura do “sabe com quem
está falando?”. Contra essa tentativa, a advocacia vai se posicionar e lutar,
pedindo ao Congresso Nacional que derrube os vetos e garanta importante passo
civilizatório.
Felipe Santa Cruz
Presidente do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados
do Brasil)
Fonte: OAB Nacional
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