Depois de sofrer uma depressão, uma mulher tem as três filhas tiradas de casa por ordem da Justiça. Por causa do marido alcoólatra, outra mulher perde sete filhos de uma vez.
Quando os pais não conseguem cuidar de suas crianças, qual a melhor saída? Afastar imediatamente os filhos ou manter a família unida e buscar uma solução?
Você vai conhecer agora histórias comoventes, que dividem as opiniões de especialistas.
Elaine: Eu tive depressão pós-parto depois da minha última menina, a Evelyn, de três anos.
Elaine trabalhava numa fábrica e cuidava de outras três filhas. Evelyn, hoje com 3 anos, era a menor. Mas, quando Elaine começou a tratar da depressão, a vida em família virou um inferno.
Elaine: O tratamento, em algum período, fez efeito. Mas depois foi tudo ao contrário.
Remédio, bebida. Elaine passava mal. E ficou mal vista na cidade onde mora, Gaspar, em Santa Catarina. Como se não tivesse condições de criar as filhas, ela foi denunciada à juíza da comarca. De uma hora para outra, policiais e conselheiras bateram na casa dela.
Fantástico: As crianças estavam em casa?
Elaine: Estavam em casa, elas estavam dormindo. Elas pegaram as meninas e saíram.
As crianças foram levadas para um abrigo público. Elaine conseguia visitá-las toda semana. De repente, as visitas foram proibidas.
Elaine: Chegamos no abrigo e disseram: ‘vocês não vão ver mais as meninas’.
No abrigo, disseram que a proibição de ver as filhas tinha um motivo.
Elaine: Disseram que o meu marido estava andando na rua bêbado, não estava trabalhando e estava pedindo comida na estrada, na rua e morando embaixo da ponte.
Fantástico: E isso era verdade?
Elaine: Não, não era. Não era.
Hoje, André trabalha na construção civil, como ajudante de pedreiro.
Andre: Minhas filhas são minha vida. Minha vida. Eu batalho para conseguir as coisas, para adquirir as coisas para elas. Todo dia de manhã, elas me beijavam, me abraçavam: ‘pai, tchau, pai. Vai com Deus trabalhar’.
Lá se vão oito meses e Elaine não consegue nem notícia das filhas.
Elaine: Como eu estou passando por esse processo todo, todas as crianças que a gente vê na rua é a minha menina mais nova, é a minha menina mais velha, é a minha menina de 6 anos.
Gaspar tem 60 mil habitantes, um quinto da população de Blumenau, cidade vizinha. Mas a relação nos números de adoção é bem diferente. Nos últimos seis anos, 37 crianças de Gaspar foram adotadas. Em Blumenau, foram 34.
Elaine: E as minhas meninas, só porque eu tive essa doença e não consegui me erguer muito rápido, eles foram lá, tiraram as meninas.
A ordem de tirar os filhos de Elaine foi da juíza Ana Paula Amaro da Silveira. Durante 11 anos, até dezembro de 2012, ela atuou na comarca de Gaspar, onde se dedicou a acelerar os processos de destituição do poder familiar. O primeiro passo para a adoção.
“Nós sabemos que o nosso cadastro de adoção, 90% das pessoas querem recém-nascidos até 2 anos. Nós começamos então a fazer com que os processos de destituição fossem mais rápidos e, aí, a dar uma chance real dessa criança ter uma família”, declara a juíza.
Zilda Giacomoni: A gente começou a correr. E pega advogado aqui e ‘pelo amor de Deus, não deixa a criança ir embora, não deixa a criança ir embora’.
Zilda e Manoel são donos de uma creche em Gaspar. Cuidam de 70 crianças. Uma delas era a filha recém-nascida de um sobrinho de Manoel.
Manoel Giacomoni: Eles nos convidaram para ser padrinho e colocaram a menina na creche. Eu ia buscar ela no dia a dia, o transporte de leva e trás da creche. E a gente começou a se apegar com ela.
A mãe da menina era uma jovem de 16 anos e com problemas psicológicos. Embora a criança estivesse sob os cuidados do tio, a destituição familiar foi pedida e cumprida na porta da creche.
Manoel Giacomoni: Nós viemos buscar a Maria Eduarda e vamos levar para o abrigo.
Zilda: No mesmo dia a gente entrou com um pedido de guarda.
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, a preferência para a adoção é da família extensa. Quer dizer, dos parentes: tios, avós. Nem assim Manoel e Zilda conseguiram dar início ao processo.
Zilda: Ela alegou que a gente não tava inscrito no cadastro de adoção e por isso a gente não tinha direito na adoção dela.
Fantástico: A família extensa não é prioridade em um processo de adoção?
“Ela é prioridade desde que essa família extensa demonstre também que tenha atenção, carinho e cuidado com essa criança”, afirma a juíza.
Manoel: Ninguém da assistente social, do fórum, veio até nós fazer uma entrevista na nossa casa, ver que tipo de pessoas que a gente era.
Zilda: A gente tem uma filha, ela tem 20 anos. Está ela está estudando arquitetura, está no terceiro semestre. E, além de estudar, ela trabalha também ajudando a gente na creche.
Letícia Giacomoni: A minha mãe, meu pai, são uma família honesta, nunca aconteceu nada assim. E eu escutava a minha mãe chorar no banheiro. Meu pai foi ficando doente.
Depois que a menina foi levada para o abrigo, não foram poucas as vezes em que Manoel e Zilda tentaram visitá-la. Mas nunca conseguiram passar do portão.
O Fantástico foi conversar com a responsável pelo abrigo, Gislane dos Santos. “Tem situações que às vezes há proibição de visitas porque realmente o processo já está se levando pra uma destituição do poder familiar. Então a gente começa a fazer o rompimento dessa vinculação com a família”, ela diz.
Acelerar processos de adoção, em muitos casos, pode levar a Justiça a cometer equívocos, diz a promotora Ellen Sanchez.
“É o tempo que tem que orientar o processo. É o tempo que tem que orientar o bom senso. Porque, se a ação foi ajuizada, se todo mundo olhou, Ministério Público, advogados, equipe técnica, aí é uma decisão que traz uma segurança jurídica pra todos os envolvidos”, avalia a promotora.
Hellen Sanchez é coordenadora, no Ministério Público de Santa Catarina, do Centro de Apoio à Infância e Juventude. Segundo ela, alguns processos de destituição em Gaspar têm que ser revistos.
Ellen: Os procedimentos que estão previstos na lei, em muitos casos, não foram observados. Por isso que o Ministério Público está recorrendo.
Fantástico: Não foram observados em que sentido?
Ellen: No sentido de oportunizar a manifestação do Ministério Público, de ouvir as testemunhas que tivessem ou os familiares que tivessem o interesse em poder acolher essa criança.
Juíza: Todas as destituições são propostas pelo Ministério Público. Todas elas têm que ter o contraditório, todas.
O Ministério Público diz que, em algumas adoções e em algumas destituições, não foi ouvido. O Ministério Público não confirma essa informação.
Juíza: Então o Ministério Público está mentindo.
Fantástico: É verdade que muitos desses processos não foram sequer comunicados ao Ministério Público?
Ellen: Alguns processos em que isso aconteceu, estão sendo tomadas essas medidas judiciais para anular essa decisões.
O delicado problema da destituição familiar chama também a atenção em outras cidades do Sul do Brasil.
O Fantástico esteve em São João do Triunfo, no interior do Paraná. Há nove anos, Rivonete e Toninho tiveram sete filhos tirados de casa.
Rivonete: A pequenininha eles me tiraram do peito. Não gosto de me lembrar disso, Deus me livre.
Eram nove filhos. Apenas o mais velho, já adolescente, estava fora do alvo da Justiça. Luís, que é o segundo mais velho, diz que só não foi levado porque fugiu.
Fantástico: Você fugiu para onde?
Luis: Para o mato.
Fantástico: Mas eles foram atrás de você?
Luis: Foram atrás de mim.
Fantástico: Eles quem?
Luis: A polícia e o Conselho.
Fantástico: Conselho Tutelar.
Luis: Conselho Tutelar.
A ordem de levar as crianças era da promotora de Triunfo, Tarcila Teixeira, que, em seguida, conseguiu a destituição familiar.
Fantástico: Que tipo de risco essas crianças corriam?
Promotora: Risco de toda sorte, risco de doenças, risco de um problema com alimentação porque tinha um envolvimento com situações de uma alimentação não adequada que eu não quero entrar em detalhes.
O alcoolismo do pai seria uma das causas. Hoje, ele está em recuperação. E, apesar do problema em casa, Rivonete tentava manter a rotina dos filhos: deixá-los na creche municipal enquanto trabalhava como faxineira.
Fantástico: E a Rivonete trazia essas crianças todo dia pra cá?
Denise: Todo dia.
Fantástico: E essas crianças apresentavam algum sinal de maus-tratos?
Denise: Não. Que eu me lembre, não mesmo.
Fantástico: E a Rivonete cuidava dos filhos direitinho?
Denise: Não sei se era o cuidado adequado para todos. Mas cuidava.
Depois que os filhos foram levados, Rivonete os visitava no abrigo público. Ela diz que foram muitos os pedidos, feitos inclusive à promotora, para tê-los de volta.
Rivonete: Eu ia lá, eu conversava, às vezes ela mandava trancar a porta. A secretária até falava: ‘olha, me desculpe, mas a doutora Tarsila falou que não tem mais nada para conversar com você sobre suas crianças’. Eu saía desesperada de lá.
Quando Rivonete perdeu a guarda de suas crianças, Luciane Micharki era conselheira tutelar em Triunfo.
“O lugar onde eles moravam era um lugar inadequado, mesmo. Porque tinha um lixão aqui na cidade e eles moravam nesse lixão. Mas com todos os cuidados, principalmente da mãe. O pai era alcoólatra. Eu acho assim: o que faltava para eles era uma base, uma estrutura."Uma ajudam lembra Luciane.
“Às vezes uma família tem falhas? Sim, tem. Todos nós temos. A falha está prejudicando a criança? Então como corrigir essa falha? Por quê? Porque retirar a criança desse convívio familiar vai prejudicar muito mais a criança”, avalia o médico Nelson Arns.
Nelson Arns, representante mundial da Pastoral da Criança, trabalha com famílias que vivem dramas como o de Rivonete.
“O que a lei fala é que a primeira opção tem que ser a família. Quanto mais próximo, melhor. Mas às vezes o que o juiz quer, interpretando errado a lei, não é salvaguardar a criança, é punir o pai. O alcoolismo, por exemplo, é doença, reconhecido pela Organização Mundial de Saúde como doença. O juiz não pode dizer ‘é sem-vergonhice do pai ou da mãe que bebe e eu vou retirar’”, explica Arns.
Os pais só perdem o direito de criar seus próprios filhos em situações comprovadas de risco à saúde, à educação, à segurança. É o que diz a lei. Nesses casos, a Justiça tem a obrigação de procurar, primeiro, os parentes mais próximos. Depois, famílias que queiram adotar, na região, no estado ou no país. A adoção internacional é a última alternativa. E foi o que aconteceu com os filhos de Rivonete e Toninho.
Os sete irmãos foram adotados no exterior. Rivonete e Toninho, hoje, moram e trabalham na chácara da dona Deusita. Os filhos que ficaram continuam por perto.
Deusita: Deram moços trabalhadores. Não fumam, não bebem. Já são casados, são bons esposos, têm uma família. E são muito apegados com os pais. Todo domingo eles vêm ali, fazem um churrasquinho, acho tão bonito. Dias desses eu disse para o meu marido: ‘veja que lindo, eles estão ali reunidinhos’. Mas ela sempre com aquele ar de tristeza, sempre falando nos filhos. Nos outros que foram.
Depois que estivemos em Gaspar, gravando esta reportagem, Zilda e Manoel conseguiram a guarda provisória da pequena Maria Eduarda. Ela já deixou o abrigo e voltou para casa.
O casal, que tem condições de contratar um advogado, finalmente vai conseguir iniciar o processo de adoção da menina.
A história de Rivonete também já tem um fim. Ela sabe que os filhos estão longe, fora do Brasil.
Rivonete: Tem que se conformar, mas não se conforma, não adianta.
O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Nelson Calandra, tem uma explicação para as decisões apressadas que muitas vezes os juízes adotam: “Eu costumo dizer que a criança e o adolescente adotados não têm problemas. Quem tem problema é o adulto. Normalmente nós juízes recebemos pedidos ligados à infância e à juventude sempre em situação de emergência”.
Mas Wanderlino Nogueira Neto, representante das Nações Unidas discorda. Ele afirma que há juízes que simplesmente ignoram o que está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente: “Muitos juízes ainda aplicam o velho código de menores, que tinha a forma de adoção por abandono e o abandono é falta de condições materiais para manter aquele filho. O estatuto é de 1990. Não é possível mais que os magistrados não estejam imbuídos, não conheçam o estatuto”.
Ellen: O que se tem que avaliar é se está se investindo na prevenção, quanto é investido numa criança que está acolhida institucionalmente e quanto que poderia ser destinado pra fortalecer as famílias evitando o ‘abrigamento’ dessas crianças.
Nelson Arns: É mais difícil fazer a reestruturação familiar? Sim, mas resolve.
E Elaine? A história de Elaine ainda não acabou. A depressão está sob controle. Mas a saudade... Ela e André cuidam da caçula e mantêm arrumado o quarto das outras filhas. Sem saber se elas voltarão um dia.
“Agora eu estou vendo que eu estou diferente, que eu estou em condição novamente de cuidar, de sair com as minhas meninas de novo. Mas eu preciso delas. Porque não é só essa daqui que eu tenho. Eu tenho as minhas outras três meninas que eu quero perto de mim”, diz Elaine.