Quando o empresário Ranieri Lima Dias entrou no projeto de família acolhedora, há 15 anos, não imaginava que encontraria, segundo ele, a forma mais eficaz de cuidar de alguém. Desde 1999, oito crianças em situação de vulnerabilidade passaram pela casa que divide com a esposa, em Campinas/SP. Foram meninos de 3 a 10 anos que cresceram, temporariamente, com os três filhos naturais do casal. “Nos chamou a atenção a possibilidade de ajudar várias crianças ao longo do tempo sem necessidade de adoção. É a melhor maneira de acolher alguém porque é feito com qualidade e em quantidade”, afirma Dias.
Segundo o juiz da Vara da Infância e Juventude de Campinas Eduardo Bigolin, a prioridade nesse tipo de acolhimento é importante para a criança ter um modelo de família em que possa se espelhar. “As crianças que passam pela família acolhedora são bem avaliadas em exames psicológicos e sociais. Têm maior interação, integração com a comunidade e gozam de maior liberdade, muito porque a família cuidou do lado afetivo, moral e material que talvez não estivesse sendo provido pela família de origem”, afirma.
O número de crianças e adolescentes acolhidos por famílias, porém, ainda é baixo se comparado ao universo de acolhidos no Brasil. São cerca de 730 crianças e adolescentes para 45,7 mil meninas e meninos abrigados, de acordo com dados de maio do Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Acolhidos (CNCA), mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
O Estado do Paraná e do Rio de Janeiro concentram o maior números de acolhidos em famílias, com 206 e 202 crianças e adolescentes, respectivamente.
Fim dos abrigos – Para inverter a proporção, juízes da vara da infância e juventude têm defendido a substituição integral dos abrigos pelos serviços de família acolhedora.
Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), existem 102 serviços de acolhimento familiar em 283 municípios. De acordo com o Cadastro Nacional de Crianças Acolhidos (CNCA), há 381 famílias acolhedoras no país. Apenas no Estado de Minas Gerais são 175. Normalmente, cada família recebe uma criança, exceto quando há grupos de irmãos.
Na Comarca de Cascavel/PR, por exemplo, as medidas protetivas de acolhimento já são cumpridas exclusivamente por meio das famílias nos municípios de Lindoeste e Santa Tereza do Oeste. “A meta é acabar, este ano, com os abrigos em Cascavel”, afirma o Juiz Sergio Luiz Kreuz, da Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Cascavel, responsável, desde 2006, pelo programa de acolhimento familiar em parceria com o Ministério Público e a prefeitura local.
“Quando o Estado interfere é para garantir a proteção da criança, mas, ao mesmo tempo, viola o direito dela à convivência familiar”, afirma o magistrado, acrescentando que 80% das crianças da região em medidas protetivas estão acolhidas por famílias.
Embora busque a inversão da proporção de crianças em abrigos e acolhidas por famílias, o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) – pasta responsável pela coordenação dos serviços de acolhimento dos municípios – não tem o objetivo de substituir integralmente os abrigos.
“Atualmente, entendemos que é importante que em municípios maiores existam mais de uma modalidade de acolhimento porque os casos são diferentes”, afirma Ana Angélica Melo, técnica da coordenadoria-geral de serviços de acolhimento do MDS. Ela acrescenta que a regra é dar prioridade ao acolhimento familiar para crianças menores de três anos. “É diretriz da ONU por causa da fase de desenvolvimento da primeira infância que exige cuidados especiais”, diz.
A contrapartida financeira oferecida pelo município responsável pelo serviço é, normalmente, de um salário mínimo por acolhido. O valor pode aumentar, caso a criança ou adolescente tenha necessidades especiais ou esteja envolvido com drogas. Em Cascavel, a família também é isenta do recolhimento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU).
Retorno à origem – Um dos critérios para seleção das famílias acolhedoras é que todos os membros concordem em participar do programa. “No nosso primeiro acolhimento, a psicóloga conversou até com meu filho que tinha dois anos, na época”, afirma Ranieri Lima Dias.
Além disso, a família não pode ter interesse ou expectativa de adoção. “Famílias com essa esperança deixarão de ser nossas parceiras para dar conforto à criança enquanto sua família está se recuperando”, explica o juiz Sergio Luiz Kreuz.
Magistrados da área da Infância e Juventude concordam, porém, que esse não é um valor absoluto. Em 2006, ocorreram duas adoções por famílias acolhedoras em Cascavel. Em um dos casos, um casal homoafetivo prontificou-se a adotar um menino de oito anos paraplégico e acolhido com subnutrição. “São situações excepcionais. A casa deles já estava adaptada. Eu e a equipe técnica achamos que era o melhor para ele”, diz o magistrado.
O objetivo principal do programa é resolver a situação jurídica da criança durante o acolhimento, que deve variar de seis meses a dois anos. Nesse período, psicólogos e assistentes sociais trabalham para resolver a situação das famílias de origem e promover o retorno da criança. Caso não seja possível, avós e tios são procurados. A última alternativa é o processo de adoção.
De acordo com Claudia Russo, coordenadora do Sapeca - um dos dois serviços de acolhimento familiar de Campinas e o mais antigo do país – 44% das crianças atendidas voltaram para a família de origem. “Notamos, nos últimos anos, um aumento de abandono de bebês na maternidade por mães usuárias de crack e moradoras de rua. Houve um caso em que a avó acolheu, mas não deu conta porque já cuida de outros netos”, conta.
Vínculo – Segundo especialistas no assunto, a quebra do vínculo afetivo não deve ser justificativa para rejeitar o acolhimento familiar. No final do período, de acolhimento, as “famílias temporárias” passam a fazer parte da rede de apoio à criança.
Com a experiência de quem acolheu e devolveu, o empresário Ranieri Lima Dias afirma que o vínculo afetivo sempre será estabelecido porque a razão da família acolhedora é exatamente essa. “Mas o trauma não existe em nenhum dos que partiram daqui”, diz. Segundo o “pai provisório”, alguns dos meninos passam as férias de junho ou visitam a família uma vez por mês. “Não parece uma criança que foi e acabou, mas sim um amigo ou parente que mudou de casa”, completa Dias, que há três meses acolhe um menino de sete anos que precisou implantar prótese no pé por causa de um atropelamento negligenciado pela família de origem.
Celeridade - Para garantir rapidez na resolução definitiva da situação da criança e reduzir o tempo médio de abrigamento, a Corregedoria Nacional de Justiça editou, em abril, o Provimento n.36. Entre outras medidas, a norma determinou que as corregedorias dos Tribunais de Justiça investiguem o magistrado que conduzir ações de destituição familiar ou adoção tramitando há mais de um ano, de forma injustificada, sem proferir a sentença. O ECA (Lei n. 8.069, de 1990) determina prazo máximo de 120 dias para conclusão nas ações de destituição do poder familiar. “As crianças não podem esperar a lentidão da Justiça”, afirma o juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça, Gabriel Matos.
Agência CNJ de Notícias