Dr. Gamaliel Marques

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segunda-feira, 25 de julho de 2011

Como o Direito Penal resolve o roubo de um boné

Muito cuidado também quando for perseguir gente importante, poderosos, personagens ilustres ou grande número de hereges. Em todos esses casos, o inquisidor deve atentar para o escândalo ou o perigo que o procedimento inquisitorial pode causar. 

Nicolau Eymerich, Manual dos Inquisidores (Directorium Inquisitorum), ed. Rosa dos Tempos, 2 ed. 1993, p. 195.
 
Como o Direito Penal resolve o roubo de um boné

Há mais de dois anos, em 25 de março de 2009, publiquei aqui no blog um post com o título de “Surrealismo”, reproduzindo notícia da imprensa:“Quatro torcedores estão presos há treze dias por roubo de boné em SP”. No final do post, comentei: “...só falta condenar os rapazes ao regime fechado em penitenciária e aí eles vão se tornar bandidos de verdade...” Clique aqui para ler novamente.
Pois bem, o flagrante se converteu em Inquérito Policial, Denúncia e Ação Penal, ou seja, por conta do roubo de um boné, a máquina policial e judiciária foi movimentada e demonstrou sua eficácia, desmistificando a falácia da impunidade, pelo menos com relação aos pequenos delitos praticados por pessoas comuns. Em consequência, os rapazes foram julgados e condenados em primeira instância, sendo um deles condenado a 06 (seis) anos de reclusão em regime inicial semi-aberto e os outros três a 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses de reclusão no mesmo regime.
A defesa recorreu e o Tribunal de Justiça de São Paulo, há poucos dias, (30.06.2011), negou provimento ao recurso, mantendo a sentença condenatória e determinando a expedição dos mandados de prisão.
O caso, em síntese, segundo consta do acórdão, deu-se nestas circunstâncias:
Consta dos autos que, na data dos fatos, logo após o término do jogo de futebol entre os times São Paulo Futebol Clube e Mirassol, os seis roubadores abordaram a vítima, que estava acompanhada de seu amigo Reginaldo Ribeiro dos Santos. Os apelantes e seus dois comparsas cercaram o ofendido e seu amigo, intimidando-os. Em seguida, Felipe retirou um boné, com o símbolo do São Paulo, da cabeça de Roberto, advertindo-o em tom ameaçador: “sou membro da Torcida Camisa 12 do Corinthians e se quiser seu boné de volta, vai buscar na sede da torcida”. Foi-lhe exibido, durante a subtração, um soco inglês, para sua intimidação.
Ao negar provimento ao recurso do Ministério Público, que pretendia o regime inicial fechado, o Relator manteve o regime inicial semi-aberto e reconheceu que os acusados são primários e de bons antecedentes:
Apesar de entender que o regime fechado é o mais adequado à gravidade do crime de roubo, verifico que os acusados são primários e de bons antecedentes, justificando a fixação do regime intermediário. Inviável, porém, o estabelecimento de regime menos gravoso, que seria insuficiente para a prevenção e repressão do delito em questão, no qual os recorrentes cercaram torcedores de outro time e subtraíram o objeto de um deles, o que demonstra periculosidade e ousadia acentuadas.
Por fim, consta do Acórdão que a vítima não foi ouvida em juízo e apresentou declaração escrita, com firma reconhecida, com nova versão dos fatos, que não foi considerada no julgamento e mantida a versão do flagrante:
Pese a vítima Roberto não tenha sido ouvida em Juízo, é certo que nos autos deflagrante confirmou os fatos tais quais descritos na denúncia (fl. 07). Algum tempo depois, apresentou nova versão, por meio de documento escrito e com firma reconhecida, cujo original foi juntado pela defesa no apenso de comunicação de flagrante, em fls. 120/121, confirmando a autoria delitiva pelos acusados, mas tentando narrar os fatos de forma que isentasse os apelantes do delito de roubo; referida declaração, porém, não tem o condão de infirmar toda a prova oral colhida, que conduz à condenação.
Não quero adentrar ao mérito da ação policial, da denúncia oferecida pelo representante do Ministério Público, da sentença de primeiro grau ou da decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo. Resta observar, contudo, que para o positivismo dogmático-punitivo-inquisidor dominante está tudo de acordo com a lei. É assim mesmo. Cada um cumpriu seu papel legal e pronto. O Delegado, o Promotor, o Juiz e os Desembargadores são todos “operadores” do Direito, fundamentaram suas ações na mesma Lei e, sendo assim, infelizmente, “dura lex, sede lex.”
O que me deixa intrigado, de outro lado, é o fato do roubo de um simples boné com o escudo de time de futebol, sem danos físicos à vítima, mesmo reconhecendo a gravidade do fato de ter sido tomado de outra pessoa, ser tão importante assim para o Direito Penal e resultar em uma pena de 06 (seis) anos de reclusão. Além disso, também me deixa intrigado o fato do Direito Penal, em crimes contra o patrimônio, não considerar a vontade da vítima, considerando que o objeto lhe pertencia, e de nada valer sua manifestação com relação ao julgamento pelo Poder Judiciário.
Mais do que dúvidas filosóficas acerca do Direito, também estou ficando sem respostas para tantas outras indagações das ruas:
- Há mesmo necessidade de se movimentar toda a máquina estatal (delegado, promotor, juiz, desembargador e, provavelmente, ministros de tribunal superior) por causa do roubo de um boné?
- Quanto tudo isto já custou e ainda custará ao contribuinte?
- Quanto custará para o contribuinte manter quatro jovens cumprindo pena em regime semi-aberto?
- Quanto custa um boné?
- Qual o sentido dessa pena para jovens primários e de bons antecedentes?
- Qual a consequência do convívio desses jovens com presos que cometeram delitos bem mais graves?
- Como será a vida deles como egressos do sistema prisional brasileiro?
- Por que o Judiciário não é tão eficaz assim com os que roubam milhões dos cofres públicos?
- Será que existe um “privilégio do poder” nos tribunais brasileiros?
- Será que existe uma escolha clara para punir os crimes de pouca repercussão econômica, mas cometidos por pobres e excluídos?
- Por que não se dá um papel relevante à vontade da vítima (justiça restaurativa?) em crimes contra o patrimônio, vez que que se trata de bem disponível?
- Por que se pune com tanto rigor os crimes contra o patrimônio?
- Por que parte da sociedade, incluindo pobres e excluídos, detestam tanto os ladrões? Será porque estavam ao lado da cruz de Jesus?
Este meu desengano com o Direito Penal e a falta de resposta para tantas dúvidas estão me mostrando, cada vez mais, que existe uma distância enorme entre Lei e Justiça e como é insignificante o Direito diante da suposta “vontade da lei”, da “intenção do legislador” e do mito da “imparcialidade” dos julgadores e demais “operadores” do Direito. Mais do que isso, meu desengano toma contornos irremediáveis quando imagino que muitos desses “operadores”, encastelados e cegos para a realidade nua das ruas, crentes que são destinatários do poder divino de julgar, apregoam que julgam com fundamento na lei, na sua consciência, senso de justiça e, por fim, com a certeza de que isto que estão fazendo é o Direito.
Eis o acórdão:

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