Muito
cuidado também quando for perseguir gente importante, poderosos,
personagens ilustres ou grande número de hereges. Em todos esses casos, o
inquisidor deve atentar para o escândalo ou o perigo que o procedimento
inquisitorial pode causar.
Nicolau Eymerich, Manual dos Inquisidores (Directorium Inquisitorum), ed. Rosa dos Tempos, 2 ed. 1993, p. 195.
Como o Direito Penal resolve o roubo de um boné
Há mais de dois anos, em 25 de março de 2009, publiquei aqui no blog um post com o título de “Surrealismo”, reproduzindo notícia da imprensa:“Quatro torcedores estão presos há treze dias por roubo de boné em SP”. No final do post, comentei: “...só falta condenar os rapazes ao regime fechado em penitenciária e aí eles vão se tornar bandidos de verdade...” Clique aqui para ler novamente.
Pois
bem, o flagrante se converteu em Inquérito Policial, Denúncia e Ação
Penal, ou seja, por conta do roubo de um boné, a máquina policial e
judiciária foi movimentada e demonstrou sua eficácia, desmistificando a
falácia da impunidade, pelo menos com relação aos pequenos delitos
praticados por pessoas comuns. Em consequência, os rapazes foram
julgados e condenados em primeira instância, sendo um deles condenado a
06 (seis) anos de reclusão em regime inicial semi-aberto e os outros
três a 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses de reclusão no mesmo regime.
A
defesa recorreu e o Tribunal de Justiça de São Paulo, há poucos dias,
(30.06.2011), negou provimento ao recurso, mantendo a sentença
condenatória e determinando a expedição dos mandados de prisão.
O caso, em síntese, segundo consta do acórdão, deu-se nestas circunstâncias:
Consta
dos autos que, na data dos fatos, logo após o término do jogo de
futebol entre os times São Paulo Futebol Clube e Mirassol, os seis
roubadores abordaram a vítima, que estava acompanhada de seu amigo
Reginaldo Ribeiro dos Santos. Os apelantes e seus dois comparsas
cercaram o ofendido e seu amigo, intimidando-os. Em seguida, Felipe retirou um boné, com o símbolo do São Paulo, da cabeça de Roberto,
advertindo-o em tom ameaçador: “sou membro da Torcida Camisa 12 do
Corinthians e se quiser seu boné de volta, vai buscar na sede da
torcida”. Foi-lhe exibido, durante a subtração, um soco inglês, para sua
intimidação.
Ao
negar provimento ao recurso do Ministério Público, que pretendia o
regime inicial fechado, o Relator manteve o regime inicial semi-aberto e
reconheceu que os acusados são primários e de bons antecedentes:
Apesar de entender que o regime fechado é o mais adequado à gravidade do crime de roubo, verifico que os acusados são primários e de bons antecedentes,
justificando a fixação do regime intermediário. Inviável, porém, o
estabelecimento de regime menos gravoso, que seria insuficiente para a
prevenção e repressão do delito em questão, no qual os recorrentes
cercaram torcedores de outro time e subtraíram o objeto de um deles, o
que demonstra periculosidade e ousadia acentuadas.
Por
fim, consta do Acórdão que a vítima não foi ouvida em juízo e
apresentou declaração escrita, com firma reconhecida, com nova versão
dos fatos, que não foi considerada no julgamento e mantida a versão do
flagrante:
Pese a vítima Roberto não tenha sido ouvida em Juízo, é certo que nos autos deflagrante confirmou os fatos tais quais descritos na denúncia (fl. 07). Algum tempo depois, apresentou nova versão, por meio de documento escrito e com firma reconhecida,
cujo original foi juntado pela defesa no apenso de comunicação de
flagrante, em fls. 120/121, confirmando a autoria delitiva pelos
acusados, mas tentando narrar os fatos de forma que isentasse os
apelantes do delito de roubo; referida declaração, porém, não tem o condão de infirmar toda a prova oral colhida, que conduz à condenação.
Não
quero adentrar ao mérito da ação policial, da denúncia oferecida pelo
representante do Ministério Público, da sentença de primeiro grau ou da
decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo. Resta observar, contudo,
que para o positivismo dogmático-punitivo-inquisidor dominante está tudo
de acordo com a lei. É assim mesmo. Cada um cumpriu seu papel legal e
pronto. O Delegado, o Promotor, o Juiz e os Desembargadores são todos
“operadores” do Direito, fundamentaram suas ações na mesma Lei e, sendo
assim, infelizmente, “dura lex, sede lex.”
O
que me deixa intrigado, de outro lado, é o fato do roubo de um simples
boné com o escudo de time de futebol, sem danos físicos à vítima, mesmo
reconhecendo a gravidade do fato de ter sido tomado de outra pessoa, ser
tão importante assim para o Direito Penal e resultar em uma pena de 06
(seis) anos de reclusão. Além disso, também me deixa intrigado o fato do
Direito Penal, em crimes contra o patrimônio, não considerar a vontade
da vítima, considerando que o objeto lhe pertencia, e de nada valer sua
manifestação com relação ao julgamento pelo Poder Judiciário.
Mais do que dúvidas filosóficas acerca do Direito, também estou ficando sem respostas para tantas outras indagações das ruas:
-
Há mesmo necessidade de se movimentar toda a máquina estatal (delegado,
promotor, juiz, desembargador e, provavelmente, ministros de tribunal
superior) por causa do roubo de um boné?
- Quanto tudo isto já custou e ainda custará ao contribuinte?
- Quanto custará para o contribuinte manter quatro jovens cumprindo pena em regime semi-aberto?
- Quanto custa um boné?
- Qual o sentido dessa pena para jovens primários e de bons antecedentes?
- Qual a consequência do convívio desses jovens com presos que cometeram delitos bem mais graves?
- Como será a vida deles como egressos do sistema prisional brasileiro?
- Por que o Judiciário não é tão eficaz assim com os que roubam milhões dos cofres públicos?
- Será que existe um “privilégio do poder” nos tribunais brasileiros?
- Será que existe uma escolha clara para punir os crimes de pouca repercussão econômica, mas cometidos por pobres e excluídos?
-
Por que não se dá um papel relevante à vontade da vítima (justiça
restaurativa?) em crimes contra o patrimônio, vez que que se trata de
bem disponível?
- Por que se pune com tanto rigor os crimes contra o patrimônio?
-
Por que parte da sociedade, incluindo pobres e excluídos, detestam
tanto os ladrões? Será porque estavam ao lado da cruz de Jesus?
Este
meu desengano com o Direito Penal e a falta de resposta para tantas
dúvidas estão me mostrando, cada vez mais, que existe uma distância
enorme entre Lei e Justiça e como é insignificante o Direito diante da
suposta “vontade da lei”, da “intenção do legislador” e do mito da
“imparcialidade” dos julgadores e demais “operadores” do Direito. Mais
do que isso, meu desengano toma contornos irremediáveis quando imagino
que muitos desses “operadores”, encastelados e cegos para a realidade
nua das ruas, crentes que são destinatários do poder divino de julgar,
apregoam que julgam com fundamento na lei, na sua consciência, senso de
justiça e, por fim, com a certeza de que isto que estão fazendo é o
Direito.
Eis o acórdão:
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